domingo, 11 de novembro de 2007

Deus e o Diabo na Terra do Sol

Brasil, 1964
Direção: Glauber Rocha

“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”
– Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa

Quase 30 anos se passaram desde a morte de Glauber Rocha, e o Brasil jamais foi presenteado com um cineasta tão polêmico; dirigiu filmes marginalizados em seus país, porém de repercussão internacional, conseguindo admiração de cineastas como Sergio Leone, Luis Buñuel, Jean-Luc Godard; os mesmos que o inspiraram, assim como o teatro de Bertolt Brecht e a literatura de Guimarães Rosa e José de Alencar. Sua relação com o cinema estava além das telas, sempre preocupado com questões populares, seus filmes faziam um papel de ciências sociais; dizia ser capaz de produzir filmes comerciais que atrairiam grande público, mas não era sua proposta. Não há um consenso quanto ao precursor do Cinema Novo, mas poucos discordam de que Glauber é o maior nome dessa escola.

Deus e o Diabo na Terra do Sol, de início, confunde-se com um documentário sobre a áspera vida nordestina: escassez natural, pobreza, emigração e o coronelismo. O primeiro plano é completamente preenchido pelo cenário sertanejo – que faz oposição ao último, que enquadra o mar –, Manoel (Geraldo Del Rey) é um trabalhador regido pelo coronelismo, ele é puramente emotivo e esperançoso; sua mulher, Rosa (Yoná Magalhães), é a razão que lhe falta, mais realista e até pessimista, fora levada a essa condição pelo que a terra a oferece, enquanto Manoel acredita que possa virar um fazendeiro ou plantar uma roça prolífera, ela acha isso apenas um sonho utópico, o sertão não tem isso a ofertar, só se pode contar com a força do trabalho braçal. A fase documental acaba quando o vaqueiro Manoel mata o seu patrão num ímpeto de violência, desprendendo-se do coronelismo. O que o motiva é um suposto sinal hierático de Sebastião (Lidio Silva), a quem ele se entrega contra vontade de sua esposa; sua nova regência é a fé cristã. Uma fé pungente, que custa o sangue dos inocentes. Tomamos parte da dor de Manoel na longa cena (quatro minutos e meio) em que, de joelhos e com uma pedra enorme sobre a cabeça, galga a escadaria do Monte Santo, Geraldo Del Rey fez questão de não usar uma rocha cenográfica para transmitir uma realidade dramática; depois de rodada a cena, Del Rey teve dois dias de folga para recompor-se e voltar as filmagens.

A influência do faroeste é encarnada no jagunço Antonio das Mortes (Maurício do Valle), caçador de recompensa encarregado de matar Sebastião, o religioso propenso a se tornar um novo Antonio Conselheiro (líder popular na Guerra dos Canudos que ganhou status messiânico; 1839–1897), o profeta se torna tão influente que angaria fiéis católicos prejudicando os donativos da igreja. O beato Sebastião é transformado em homem sacro pela câmera, que faz movimentos entre o céu e a sua imagem, da mesma forma o Monte Santo se torna um lugar auspicioso. Antonio das Mortes aparece na forma de herói para Rosa, justo no momento em que seu marido e Sebastião estão inexoravelmente unidos. O massacre no Monte Santo é uma clara referência à cena nas escadarias de Odessa, de O Encouraçado Potemkin, cujo diretor, Sergei Eisenstein, é o grande ídolo de Glauber Rocha; a montagem é fragmentada e parte do closer para os planos abertos, características eisenstenianas; a edição ainda faz a multiplicação de Antonio das Mortes transformando-o em exército. O que torna a alusão mais óbvia é o devoto atingido no olho.

As imagens têm poucos tons de cinza, o contraste entre o branco e o preto é muito forte, em vários momentos há superexposição de luz, como na cena em que Antonio das Mortes negocia com o padre e o fazendeiro na igreja (a luminosidade através da janela), ou na apresentação do campo da peleja entre o jagunço e o cangaceiro. Glauber quis retratar a flora regional, é importante saber que caatinga significa, etimologicamente, mato esbranquiçado, de origem tupi, isso porque a vegetação recebe uma coloração cinzento-parda na estação seca. É o preto no branco, como as xilogravuras que ilustram os cordéis, essa mesma técnica fora usada em Vidas Secas, de 1963, e seria em Cinema, Aspirinas e Urubus, de 2005. A cultura cordelista também é retratada nas músicas populares, com letras do diretor e melodias de Sérgio Ricardo, narram situações e biografam personalidades – como a morte da mãe de Manoel e a canção de Antonio das Mortes, respectivamente –, a mesma função comunicadora do cordel no sertão nordestino. O extremo erudito da trilha sonora está nas composições de Villa-Lobos, presentes nos êxtases de violência, religiosos ou amorosos – o beijo entre Corisco e Rosa.

Deus e o Diabo é marcado por rituais espirituais da religião católica e cultura africana: a conversão de Manoel para ser aceito por Sebastião, o sacrifício do inocente para lavar a alma dos pecadores, casamento, exorcismo, a encarnação de Lampião em Corisco, o batismo de Satanás, pactos etc. Alguns ritos são montados pelo cinema, Ismail Xavier cita a cena expressionista, após o massacre dos religiosos, em que as sombras do punhal de Rosa e do rifle de Antonio das Mortes se tocam, simbolizando a efetivação de sua promessa heróica, é como se ele dissesse: “Libertei o seu marido de Sebastião”. Mas uma liberdade efêmera, logo depois, novamente sem o consentimento da esposa, o vaqueiro se submete a uma pessoa: o cangaceiro Corisco. Othon Bastos é um cangaceiro vingativo, não só pela morte de Lampião e Padre Cícero, mas por questões políticas, a ordem já estabelecida, que divide o homem em pobres e tiranos, o leva ao anarquismo e à desordem. Minhas cenas favoritas são as que Othon olha diretamente ao espectador, numa delas ele encarna Lampião e tem a personalidade dividida, uma bela construção cinematográfica fraciona Corisco em metades.

No fim, a razão de Rosa prevalece; antes da batalha final, Manoel reconhece Sebastião como reles homem, e Corisco admite fraquezas em Lampião. Pela primeira vez ela tem poder sobre o esposo e recebe dele a decisão sobre o futuro do casal: fugir ou permanecer no cangaço. O matador mais uma vez dá liberdade aos cônjuges assassinando o cangaceiro. A saga de Corisco se encerra; a de Antonio das Mortes continuaria em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, 1969; a epopéia de Manoel e Rosa é infinita, como em Grande Sertão: Veredas. No fim, a terra do sol não é de Deus nem do diabo, é do homem. É assim o Brasil que Glauber almejou.

Um comentário:

Knox disse...

Ver O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, página 357, para saber sobre a frase "o sertão vai virar mar...", sacrifício de crianças por fanáticos religiosos etc.