quinta-feira, 19 de julho de 2007

Um Cão Andaluz

Un Chien Andalou
França, 1929
Direção: Luis Buñuel

O olho cortado nos leva a assistir a Um Cão Andaluz não com a visão fisiológica, mas com a onírica; os psicanalistas afirmam que a coceira na palma da mão remete ao desejo do ato sexual, o que explica as ações do pervertido; a corda presa às costas do homem com o piano, as mulas e os padres no outro extremo simboliza o peso da moral, a consciência cristã e a morte, que tentam impedi-lo. Essas são algumas das dezenas de interpretações do filmes, há quem veja simbolismos marxista, ateístas, socialistas... Talvez, as únicas que possam fazer sentido a Um Cão Andaluz são as metáforas freudianas, pois o Decreto do Surrealismo, de 1924, afirma que esse movimento artístico não tem nenhum simbolismo senão na psicanálise. Mesmo assim Buñuel refutou todas as conjeturas acerca do filme.

Um Cão Andaluz é até hoje o curta-metragem (na época ainda não havia esse termo para o cinema) mais assistido no mundo; e não é pra menos, ele consegue chocar o espectador como poucos filmes, as cenas contundentes, a escatologia, ausência de simbolismos e a excentricidade fazem parte da estética surrealista, a cena em que é cortado o olho de uma mulher (foi usado um olho bovino) com uma navalha, paralelamente uma nuvem “corta” a lua, é a melhor delas. “O surrealismo chega o auge provavelmente quando faz o dia-a-dia estranho”, diz Robert Short, artista integrante do movimento.

Para o roteiro, Luis Buñuel juntou-se a Salvador Dalí, pintor surrealista (algumas de suas obras são Persistência da Memória, Premonição da Guerra Civil e Gala Atômica), que interpreta um dos padres preso às cordas. A idéia de realizar o filme veio a partir do sonho dos dois, Buñuel falou a Dalí sobre um estranho sonho “em que uma nuvem cortava a lua... com uma navalha corta um olho”, Dalí falou sobre o seu: “uma mão rastejante com formigas”. A idéia era que nada fizesse sentido. Na primeira exibição do filme Luis Buñuel muniu-se de pedras, encheu os bolsos delas, temendo uma reação negativa do público, foi surpreendido, o filme foi bastante aplaudido, e rapidamente ele esvaziou os bolsos. Precisaria de tal precaução em 1930, na exibição de A Idade do Ouro, quando ele não estava preparado, os espectadores demoliram quadros de Salvador Dalí expostas no cinema, o filme foi acusado de fazer apologia à subversão moral e cristã. Só por curiosidade: é de Buñuel a frase: “Sou ateu, graças a Deus”.

Assista ao filme na íntegra no Google Videos

terça-feira, 10 de julho de 2007

Herói

Ying Xiong
China, 2002
Direção: Yimou Zhang


“Em uma guerra há heróis dos dois lados”, diz no começo do filme. O título original é mais adequado, Ying Xiong, que em Chinês clássico significa herói(s), o plural ou singular não é determinado. À primeira vista o herói parece ser Sem Nome, personagem de Jet Li, o que não fica claro até o fim da trama. Sem Nome é o prefeito de uma pequena cidade que se apresenta ao Rei Qin como o espadachim que derrotou os assassinos que ameaçavam o aspirante a Imperador. O estado de Qin de fato existiu, há mais de dois mil anos, situava-se a noroeste da atual China. O Rei, considerado até por seus súditos um tirano, pretendia unificar os sete estados e tornar-se o primeiro Imperador.

Para provar que derrotou os assassinos, Sem Nome mostra as armas dos derrotados; de fato, na China antiga, devia-se mostrar as cabeças decapitadas dos vencidos, Zhang, para moderar a violência, trocou por armas. Herói poderia ser um filme bem sanguinário, mas se vê poucas gotas de sangue. Ele conta a sua versão da vitória sobre Céu, Neve Voadora e Espada Quebrada, mas o perspicaz Qin percebe a mentira de Sem Nome e conjetura a sua própria versão dos fatos. Herói tem, desse modo, uma estrutura similar à de Rashomon, de Akira Kurosawa (Rashômon, 1950), em que as pessoas envolvidas em um homicídio têm de contar suas versões sobre o crime. Curioso como as armas são extensões dos assassinos ao qual pertencem, isso se reflete nos seus nomes: Espada Quebrada tem, literalmente, uma espada quebrada; a espada de Neve Voadora tem o cabo e bainha brancos, como a neve; Lua, discípula de Espada Quebrada, tem lâminas em curvas acentuadas, que lembram a lua crescente; Céu tem uma lança cor de prata; Sem Nome é um personagem sem batismo, mas é importante perceber que todo o tempo em que ele está em frente ao Rei Qin, todo o tempo dramático, ele está Sem Arma.

A fotografia e o figurino se encarregam de transformar Herói em uma Poesia das Cores, não há nada mais pitoresco que a Floresta Dourada, palco da refrega entre Lua e Neve Voadora, e a luta entre Espada Quebrada e Sem Nome sobre um lago que mais parece um espelho natural. Zhang conta as dificuldades de filmar essa locação, a equipe tinha somente duas horas por dia para filmar, tempo em que as águas estavam em calmaria, todo o resto do tempo o lago tinha uma correnteza natural, a cena levou vinte dias de filmagens. As cores têm um papel fundamental no enredo de Herói, cada segmento de história contado pelos personagens tem uma cor principal. A paixão entre Espada Quebrada e Neve, inventada por Sem Nome, tem a cor vermelha; o amor entre os dois, na versão hipotética de Qin, recebe o tom azulado; quando Sem Nome decide contar a verdade, a fotografia e o figurino são brancos. Espada Quebrada ainda conta como conheceu Neve, segmente verde. A cor preferida do verdadeiro Rei Qin, igual à do personagem, é preta. As armaduras do seu exército, seus cavalos, assim como a fotografia das cenas em seu templo, são todas pretas, cor que simboliza a morte.

Sem Nome vive um dilema, ele teve a confiança dos assassinos em matar o tirano, mas Espada Quebrada é contra o plano, acredita que Qin é único que pode unir a “Nossa Terra”, mesmo que isso custe o sangue de muitos, inclusive o seu. Sem Nome chega determinado a cumprir o plano, as velas à frente do Rei captam sua “intenção assassina” quando direciona as chamas ao governante, em outro momento as chamas circulam desordenadamente, é quando Sem Nome está indeciso.

O filme chegou a ser considerado fascista, justificando a violenta opressão do Imperador. A verdadeira dinastia unificou os outros seis estados (Chu, Qi, Wei, Zhao, Yan e Han), a língua – como sugere o personagem – e iniciou a construção da Muralha da China, recetemente considerada uma das Sete Maravilhas Modernas. Hoje, China é propensa a se torna a maior potência mundial nas próximas décadas.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Era uma Vez no Oeste

C’era Una Volta il West
Itália, 1968
Direção: Sergio Leone


Hoje em dia se produzem poucos faroestes, na década de 90 houve dois filmes do gênero vencedores do Oscar de melhor filme, Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992) e Dança com Lobos (Dances With Wolves, 1990), algo só realizado anteriormente pelo filme Cimarron (Cimarron, 1931); nesta década, apenas um grande sucesso comercial, O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), considerado por alguns críticos uma subversão do gênero pelo seu tema homossexual. Mas o faroeste já teve o seu período áureo; na época, as nações mais prolíferas eram Itália e Estados Unidos. No momento em que o cinema italiano sofria uma crise, os cineastas se atraíram pelos abastados produtores americanos, dessa união nasceu o Spaghetti Western, que gerou mais de duzentos filmes, os melhores dirigidos por Sergio Leone (Por um Punhado de Dólares, Três Homens em Conflito, Quando Explode a Vingança...).

Penso no faroeste como o gênero cinematográfico que mostra o desenvolvimento de uma região: a pequena cidade que acabou de receber o telégrafo, a construção da ferrovia, o jornal impresso etc. As civilizações demasiado urbanizadas em que vivemos, a globalização e toda a tecnologia que nos cerca não demandam mais os filmes que mostravam as pequenas sociedades campestres, talvez por isso a baixa produção de westerns em tempos atuais. Era uma Vez no Oeste deixa isso bem claro, normalmente, nos filmes do gênero, a cidade é composta por uma única rua principal, Flagstone, a cidade de Era uma Vez, é quase que uma metrópole do velho oeste, e a vemos sempre em construção.

Digo sem medo de errar que a seqüência inicial é uma das melhores já filmada. Os três homens armados esperando o trem na estação ferroviária é uma referência ao filme Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann (High Noon, 1952), mas em Era uma Vez o veículo está duas horas atrasado, e nos deleitamos com o tédio cômico dos caubóis. Leone pretendia reunir os astros de Três Homens em Conflito (Il Buono, il Brutto, il Cattivo, 1966) para essa cena: Clint Eastwood, Lee Van Cleef e Eli Wallach, mas Eastwood teve problema de agendamento e a idéia foi descartada. A trilha sonora é composta por ruídos, o zumbido da mosca, o gotejar, o moinho enferrujado constroem a orquestra, todos sons naturais, porém amplificado em laboratório. É uma marca registrada de Leone rodar cenas longas e lentas quebradas por ação brusca, rapidamente concluída, forte inspiração nos filmes japoneses de samurai, principalmente os dirigidos por Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu; Gaita, personagem responsável pela melhor atuação de Charles Bronson, é quem rompe o silêncio.

Jill McBain, interpretada pela bela Claudia Cardinale, é a personagem central – posição não muito comum para uma mulher nos westerns –, Frank, vivido por Henry Fonda, é o homem que está interessado na riqueza preparada pelo seu falecido marido e a trata como uma mera prostituta; Cheyenne, Jason Robards, tem uma relação maternal e amorosa ao mesmo tempo; Gaita é uma espécie de guarda-costas. Todos iniciam relação com ela por acaso. Frank é ambicioso e pensa em um dia abandonar a pistola para se apossar de uma arma ainda mais poderosa: o dinheiro, pois tem consciência de que não há lugar para caubói com o desenvolvimento das cidades, ele pensa em suceder Morton, personagem que sofre de uma deficiência e não tem força nem mesmo pra morrer (o seu nome já nos lembra a palavra morte). Ele é um Cidadão Kane do velho oeste, dono de linhas ferroviárias, possui grandes riquezas, mas seu maior desejo é conhecer o mar; ironicamente, ele passa suas últimas horas de agonia em uma praia de proporções muito menores, uma poça de água.

Leone disse que todos os personagens, exceto a de Cardinale, têm consciência de que não chegaram ao fim da trama vivos, ainda usando palavras de Leone, o filme “pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Era uma Vez no Oeste é, do começo ao fim, uma dança da morte”, suspiro que é muito bem trabalhado na morte de Morton; de Frank, orquestrado pela gaita; no vapor exalado pelo trem.

A película é soberba em imagens, Fitz Lang (M – O Vampiro de Düsseldorf, Metrópolis) disse que o formato estendido dos filmes “só presta para cenas de serpentes e enterros”, e para Sergio Leone, eu acrescento. O Filme faz uso magistral do formato, seja na cena de enterro, como sugere Lang, nos duelos ou nas externas, destaco as cenas de Monument Valley, quase um personagem dos filmes de faroeste, Era uma Vez foi quase todo rodado em desertos da Espanha, mas Sergio Leone achou imprescindível adicionar esse cenário. Ennio Morricone, com toda a justiça, compôs uma das mais belas trilhas sonoras da história do cinema, impossível não cantarolar Like a Judgement, tema do personagem de Henry Fonda.

O último faroeste e penúltimo filme da carreira de Sergio Leone é o épico que parece nos despedir do gênero. O trem chega a Água Doce, que se tornará uma grande cidade, o sonho que McBain deixou de herança, os caubóis não têm espaço nesse tipo de lugar. Gaita tem de dar adeus.