terça-feira, 26 de junho de 2007

Viagem à Lua

Le Voyage dans la Lune
França, 1902
Direção: Georges Méliès


Versão do filme em 24 quadros por segundos; Áudio (explicadora): francês

Georges Méliès era um mágico, literalmente, e soube transportar com genialidade o seu dom para o cinema. Acredito que você conheça a famosa história da exibição do filme A Chegada do Trem (L'Arrivée d'un train à La Ciotat, França, 1895), dos irmãos Lumière, a primeira exibição de um filme com público pagante. Méliès estava na platéia nesse dia e descobriu a vertente do entretenimento no cinema, algo que nem mesmo os Lumière acreditavam, achavam que era algo que só seria usado para estudos científicos e logo, logo sairia de moda. Felizmente sua previsão estava equivocada.

Méliès fazia apresentações como mágico circense em teatros, e o teatro influenciou diretamente nas suas obras cinematográficas. No cinema, ele realizava as mágicas por meio dos efeitos especiais, ele é considerado o pai da trucagem. A cada filme novo, efeitos inéditos surpreendiam platéias do mundo todo. Sempre foi copiado, mas ele não fazia questão de manter seus truques em segredo, no filme seguinte ele tinha novos efeitos. Seu filme mais conhecido é Viagem à Lua, a primeira ficção científica; se esse pioneirismo por si só não bastasse, Viagem à Lua contém a primeira cena em animação da história do cinema.

Acima, na janela do YouTube, há o filme na íntegra. Se você assistiu ao filme pela primeira vez, talvez algumas coisas não ficaram claras, também deve ter prestado atenção na voz da mulher que “narra” o filme em francês. Essa voz é da Explicadora, uma função obsoleta nos filmes atuais. Antes mesmo de os filmes adotarem textos, comum nos filmes mudos, alguém teria de explicá-los, normalmente o diretor do filme durantes as exibições em feiras e praças. Viagem à Lua deve assistido com ajuda de um explicador ou algumas cenas podem não ficar claras; pelos menos é bom que se tenha lido sobre o filme.

A primeira cena mostra o “diálogo” político entre homens que falam sobre a necessidade de enviar um foguete à lua. A cena seguinte já é a construção do foguete. Note que não há planos pequenos, close, aproximação de algum objeto. Méliès tinha um jeito de filmar único para todos os seus filmes: a câmera sempre parada, o enquadramento totalmente preenchido pelo cenário e personagens, cada plano é um plano seqüência, algo que lembra o ato do teatro, onde se conta um “capítulo” da peça, há pausa para troca de cenário e em seguida o próximo ato.

A chegada do foguete à lua é uma cena emblemática, o foguete, que mais parece uma bala, atinge a lua que tem um rosto humano, rosto nos astros celestes também foi usado por Méliès em O Eclipse (L’Éclipse du soleil en pleine lune, França, 1907). Na lua, os humanos são surpreendidos pelos selenitas, são seqüestrados e fogem depois de um combate curioso, ao serem atingidos, os selenitas explodem em fumaça. Para voltar à Terra? Muito simples. Basta empurrar a nave em um penhasco, como vemos a lua acima da Terra, a gravidade se encarregar do resto. Desnecessário dizer que o filme e seus princípios físicos são refutados pela ciência moderna. Tenha em mente que o filme é baseado na obra Viagem ao Redor da Lua, do escritor Julio Verne – o pai da ficção científica na literatura –, ainda no século XIX.

Viagem à Lua é a maior obra de Georges Méliès, foi sucesso em todos os lugares em que foi exibido, inclusive nos Estados Unidos, onde ele não ganhou um centavo, pois funcionários do ramo cinematográfico de Thomas Edison (um dos pioneiros do cinema e inventor, entre outras utilidades, da lâmpada elétrica e microfone) haviam feito cópias ilegais do filme e exibido por toda a América. Anos depois Méliès viria à falência.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Nosferatu, uma Sinfonia de Horror

Nosferatu, eine Symphonie des Grauens
Alemanha, 1922
Direção: F. W. Murnau

Baseado no romance Drácula, de Bram Stoker, esta é uma das mais belas expressões artísticas da história do cinema. Murnau preferiu Nosferatu ao título do livro por ser uma palavra mais soturna, mas também usou um termo presente na literatura de Stoker; na época em que escreveu, achava que a palavra era a tradução de “vampiro”, na verdade, é Transilvânia. A mulher de Stoker, herdeira dos direitos autorais do então falecido marido, proibiu a reprodução do filme, considerou um plágio. Na época, as leis sobre direitos autorais não eram muito claras, principalmente acerca do cinema. Prana Filmes, estúdio que fez Nosferatu, simplesmente não se preocupou em pedir os diretos à viúva de Stoker. O filme chegou a ser queimado, mas para felicidade do cinema no mundo todo, algumas cópias estavam salvas em outros países.

O vampiro de Murnau, chamado de Graf Orlok, é uma figura horripilante – talvez não nos dias de hoje –, quase uma mistura de homem e rato, as orelhas são semelhantes às de morcegos, suas unhas longas fazem os movimentos das mãos parecerem aranhas; enquanto a maioria dos filmes de vampiro traz a criatura com os dentes caninos transformados em presas, como os cães, Nosferatu tem os dentes centrais, como os roedores; ele também não é nenhum pouco sedutor, é engenhosamente pestilento. Max Schreck, que interpreta Conde Orlok – por funesta coincidência seu nome significa “terror” ou “medo” em alemão, na época achava-se que era um truque publicitário –, não se vale da teatralidade que a maioria dos vampiros adotou (Bela Lugosi, em Drácula, de 1931, por exemplo), ele atua de forma hipnótica a fim de nos passar tensão. Um dado curioso: Max Schreck não pisca os olhos uma única vez enquanto encena.

Hutter é um vendedor de imóveis que recebe um recado de Knock, lacaio de Orlok, sobre o desejo do seu mestre de comprar uma casa em sua cidade, Bremen. Hutter viaja à Transilvânia sem temer os rumores sobre a vilania de Nosferatu. Chegando ao castelo do conde, Orlok tem um estranho desejo pela mulher de Hutter, Lucy, após ver o camafeu com a imagem dela, logo ele se apressa em fechar o negócio e ir morar próximo a Lucy. Um das fraquezas do vampiro de Murnau é não poder se afastar da terra onde morreu, como ele deseja incondicionalmente ir até Lucy, ele decide levar em caixões o solo pestilento. Muitas das cenas nas quais o Conde aparece foram filmadas de dia, o que parece ilógico tendo em visto que os vampiros têm vulnerabilidade à luz solar, na época, era comum tingir a película do filme de azul para representar a noite, os equipamentos tinham pouca ou nenhuma condição de fazer filmagens externas à noite. E a luz foi usada de forma magistral, bem característico do expressionismo alemão. A sombra antecedendo a aparição da criatura virou um clichê do gênero horror. “Nosferatu não é um filme em preto e branco, mas em sombra e luz.” diz Herzog, que viria a fazer uma refilmagem em 1979.

Uma das cenas que foi gravada em plena luz do sol.

Quando chega à pacata cidade de Bremen, Orlok traz consigo a praga. A população está fadada ao extermínio, mas Lucy descobre as fraquezas vampíricas: repulsa a cruz e outras que estão obsoletas aos vampiros contemporâneos. Para matá-lo, uma pessoa pura de coração deve mantê-lo ao seu lado até o nascer do sol. E ela se entrega à criatura, dá o seu próprio sangue, distraindo-o como uma criança bebendo leite, até que amanheça e a luz solar destrua-o.

Versão do filme com a película pintada. Era comum tingir o filme de azul para representar a noite.

Nosferatu ficará na história do cinema por anos vindouros, mas não pelo seu horror, que já não tem o mesmo efeito que teve, mas pela arte que imprime.

No Brasil, há uma versão do filme cujas imagens são colorizadas (tingidas, como na imagem acima) e com trilha sonora não original. Faça um favor a si mesmo, passe longe dessa edição, ela é repleta de efeitos especiais que tiram a essência do filme.

A versão original do filme pode ser vista na íntegra no Google Vídeos. O texto é em inglês, como o filme é mudo, só um pouco de conhecimento na língua inglesa é suficiente para compreendê-lo.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

2001: Uma Odisséia no Espaço

2001: A Space Odyssey
EUA, 1968
Direção: Stanley Kubrick

Kubrick apresenta as imagens mais eloqüentes da história do cinema em 2001: Uma Odisséia no Espaço, a obra máxima da ficção científica. A abertura do filme, como era comum na década de 60, são alguns minutos de tela preta, mas, nesse filme, a escuridão tem um significado próprio: a aurora da vida, o período que antecede a gênese; em seguida, o filme nos leva para a aurora do homem.

Em época primitiva, macacos – ou antecessores do homem, se preferir – vivem momentos difíceis de sobrevivência devido à estiagem, eles vivem em meio à fartura de carne animal, mas os símios não têm arma natural capaz de abater a presa – o que nos diz isso é o ataque de um tigre a um primata – por isso se alimentam das escassas ervas. As últimas poças d’águas são disputadas entre as tribos. Em seguida temos a cena que dá a primeira virada ao filme: a aparição de um monólito negro, algo perfeitamente lapidado e muito além da compreensão dos primatas. A pedra é uma forma de representação da tecnologia, tendo em mente que os macacos não são capazes de fazer tal trabalho artístico, o monólito é uma forma alienígena. E ele instiga a tribo ao uso da ferramenta, é quando o macaco descobre que o osso de um animal morto pode ser usado como arma, uma clava primitiva. A expressão de curiosidade é sutil, em seguida ele dilacera a ossada, cena perfeitamente casada com a música arrebatadora de Strauss Assim Falou Zaratustra (não por coincidência o título de um livro de Nietzsche). E então, no que ficou marcado como a maior elipse temporal do cinema, a arma empunhada pelo símio é jogada ao alto e evolui-se para uma nave espacial, um salto de quatro milhões de anos representado pela ferramenta mais simples à mais complexa.

Um dos mais belos planos do filme. O sol e a lua crescente compõem um símbolo do zoroastrismo, representa o eterno conflito entre a luz e a escuridão.

A maestria de Kubrick está na forma como ele nos informa. Penso que um diretor menos genial descreveria tudo com uma narração em off, o que tiraria a magnitude da obra e deixaria com cara de um documentário clássico do Discovery Channel. Kubrick faz com que nos sintamos junto aos personagens, sentido todas as suas aflições e euforias. Quando chegamos ao espaço já colonizado pelo homem, experimentamos todo o tédio que os cerca por meio das habitualidades do dia-a-dia: prática de exercícios físicos, alimentar-se de comidas prontas, sol artificial.

O filme é implícito, taciturno e de ritmo lento, Stanley Kubrick dar-se ao luxo de mostrar vários planos que descrevem o cenário e o contexto (e vão muito além disso); na cena em que o astronauta Poole (Gary Lockwood) é arremessado ao espaço, há uma seqüência de três minutos com a respiração aflitiva da vítima; talvez por esses motivos 2001 foi tachado por muitos críticos como um filme enfadonho e maçante. Na première, em Nova York, boa parte do público saiu antes da metade do filme, o que levou Kubrick a dar uma cadência mais rápida eliminando 19 minutos da película original.

2001 está mais atual do que nunca e continuará sendo por séculos, a epopéia humana mostra em sua cadeia evolutiva como nós criamos tecnologia para nos destruir, isso é bem mais evidente nos dias de hoje do que em 1968, ano de lançamento do filme. Na obra, os humanos não passam de meros reparadores, HAL-9000 é o sexto tripulante e comandante da nave Discovery na missão Júpiter. E é apenas um computador. A outra parte da tripulação é composta por cinco astronautas humanos, três deles em estado de hibernação. Por meio de inteligência artificial, ele tem o domínio das operações. O conflito entre a máquina e o homem tem início quando HAL prevê a falha total de uma antena, uma afirmação dúbia para o astronauta Bowman (Keir Dullea), que vai certificar-se do relatório e confirma sua previsão: houve uma falha no computador. Temendo futuros erros, os astronautas acordados pretendem desligar o computador, tarefa nada fácil, já que HAL é onipresente na Discovery. Bowman e Poole vão a uma pequena nave que pode operar independente da nave principal onde compactuam contra a máquina, mas o perspicaz HAL-9000 lê os lábios de seus antagonistas. Bowman é único sobrevivente do embate.

Ao término do conflito Bowman é deliberadamente lançado a uma dimensão além Júpiter e chega a um enigmático quarto. O tempo vai se encarregar de livrar-se da carcaça humana: o corpo. No auge da senilidade, a vida de Bowman não se esvai, em vez disso o monólito aparece mais uma vez para que o humano dê seu próximo passo evolutivo e o torne-se a criança-estrela, apresentada na forma de um embrião espacial.

Um dos planos da seqüência em que Bowman viaja a Júpiter. Não parece um espermatozóide indo em direção ao óvulo (quarto)?

Ao longo do filme podemos ver – e ouvir – alguns paralelos com o zoroastrismo, religião da antiga Pérsia, penso que Kubrick nos remete à filosofia de Nietzsche. Em seu livro Assim Falou Zaratustra – Zaratustra, conhecido pelos gregos como Zoroastro, é o fundador da religião – o filósofo fala, entre outros, do mito do além-homem (ou super-homem em algumas traduções), o ser que está acima do pecado original, acima de todos os outros homens. As últimas imagens, após os créditos, são como as cenas iniciais, somente a escuridão, penso nisso como uma alusão ao mito do eterno retorno.