segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Tiresia

Tiresia
França/Canadá, 2003
Direção: Bertrand Bonello


Abertura de Tiresia

Só a introdução de Tiresia prende a atenção do espectador prometendo-lhe um belo filme. Bonello se abstém dos créditos iniciais, somente o magma vulcânico preenche a tela. Lava é uma substância transformadora e transformável, mote principal do filme. Mais atraente ainda é disparidade com a esplêndida Sétima Sinfonia de Beethoven, que de início é mais serena e quando chega à fase mais arrebatadora é sincronizada com a imagem tranqüila de Tiresia. A mesma música faz parte da trilha sonora de Irreversível (Irréversible, 2002), outro título francês que fala de mudanças.

Terranova (Laurent Lucas) é definido na primeira cena em que aparece: um homem que vai ao museu de arte admirar esculturas de pessoas despidas. Ele vai às ruas periféricas de Paris, local freqüentado por transformistas, vários deles brasileiros; Terranova é atraido pelo recluso Tiresia (de agora em diante tratada pelo gênero feminino), que fugiu da pobreza das favelas brasileiras e vive da prostituição na França junto com o proxeneta Eduardo, seu irmão. O objetivo de sua busca não é meramente o michê, ele tem pretensões mais poéticas; ele seqüestra Tiresia e a mantém presa no porão de sua casa para admirar os dois sexos que habitam o corpo, é um voyeur casto. A cena mais contundente e polêmica é a que o travesti, em revolta, revela o pênis para o observador, nos fóruns de discussões do filme – que são poucos, haja vista sua pouca popularidade –, a questão mais comum é sobre a sexualidade do ator, na verdade, da atriz, Clara Choveaux; foi usado um pênis postiço, duas próteses entraram em cena, uma relaxada e outra ereta, usada em um manage a trois. Clara está em seu segundo filme e faz uma ótima atuação; seu primeiro filme, também dirigido por Bertrand Bonello, foi O Pornógrafo (Le Pornographe, 2001).

O enredo de Tiresia pode parecer pouco claro, isso porque é baseado no mito grego de Tirésias e não há nenhum aviso prévio sobre essa questão, o que seria praxe do cinema americano: temos a definição de pulp em Pulp Fiction, de poltergeist em Poltergeist, o Fenômeno... No cinema europeu, normalmente, essas informações são implícitas. No mito, Tirésias ia ao templo fazer sua oração diária, no caminho viu um casal de cobras copulando, ele interrompeu o ato jogando uma pedra na cobra fêmea e miticamente tornou-se uma mulher. Virou uma famosa prostituta e, anos depois, percorrendo o mesmo caminho, assistiu a outro casal de répteis acasalando e novamente interrompeu o ato, atirando uma pedra, desta vez, na cobra macho, então Tirésias voltou ao sexo original. As mesmas mudanças pelas quais passam a personagem do filme.

Privada dos hormônios que a mantém com as definições femininas, Tiresia engrossa a voz e volta a ter barba para o desprazer de Terranova. O animal de estimação no jardim desflorescido, morto a um golpe de pá, é o sinal da mudança que sofreu Terranova e o mau agouro iminente. Ele descarta sua refém, mas antes a cega furando seus olhos. Doravante Tiresia “volta” a ser homem e faz premonições. No mito heleno, Zeus e Hera discutiam acerca de relações sexuais e não chegaram a consenso sobre qual sexo sentia mais prazer durante a transa; decidiram dar o veredicto a Tirésias, que viveu as duas experiências. Ele respondeu que foi a mulher, Hera recebe a reposta com indignação, tendo em vista que o homem dá prazer à mulher, como castigo, cega-o; Zeus, grato pela resposta e em caráter de compadecimento, recompensa-o dando-lhe o dom da premonição. Tirésias seria um dos maiores oráculos gregos.

A segunda fase do mito é apresentada pelo com mudanças radicais: Tiresia passa a ser interpretado por outro ator, Thiago Teles, também brasileiro; Laurent Lucas, agora, encena sob o nome de Padre François, o que pode causar certo embaraço, algumas críticas dizem que são o mesmo personagem, Terranova é esquizofrênico ou talvez sofreu mudanças bruscas, mas os créditos realmente apontam para personagens distintos. Laurent Lucas encena o que é o oposto do seu primeiro personagem, um padre que passa muito tempo em jardim florido, talvez daí venha a confusão. Foi um belo método de brincar com as dualidades encontrado por Bonello.