quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A Guerra do Fogo

La Guerre du Feu
França/Canadá, 1981
Direção: Jean-Jacques Annaud

A Guerra do Fogo é um filme cujo objetivo vai muito além do entretenimento, trata-se de uma épica aventura embasada em profundo estudo antropológico da era primitiva. O resultado é uma obra altamente imersiva que leva o espectador a 80.000 anos a.C., quando o fogo era sinônimo de poder e sobrevivência. Era algo tão fundamental que a tribo de Homo Sapiens Ulan – dos personagens principais – possuia um membro encarregado de manter uma tocha sempre acesa, já que não conheciam a técnica de criação do fogo e tinham de aproveitar as raras fontes naturais. Quando tribos se digladiavam, não bastava derrotar o inimigo, era necessário apagar qualquer vestígio do fogo para que outros não aproveitassem a chama, reduzindo, assim, as chances de remanescência dos rivais. Cada sociedade é ricamente construída e possui características culturais próprias, elas têm diferentes postura corporal, traje, dieta, níveis de inteligência e de capacidade motora, e toda essa riqueza de nuances é revelada nos encontros entre espécies de hominídeos.

Um erro muito comum ao falar sobre A Guerra do Fogo é achar que se trata de um filme mudo, vários usuários do sítio IMDb cometem essa gafe ao comentá-lo, este é, na verdade, um filme como uma linguagem que ninguém entende, mas todos a interpretam; é um idioma universal que põe o filme acima de todas as barreiras idiomáticas. O gênio por trás disso: Anthony Burgess, roteirista, lingüista e escritor que ficou mundialmente famoso após a adaptação do seu livro Laranja Mecânica para o cinema por Stanley Kubrick. Burgess desenvolveu idiomas com níveis de eficiência distintos, os menos evoluídos abusam de grunhidos e gritos; quanto à tagarela Ika (a garota que segue o trio Ulan), percebemos algumas dezenas de palavras, quase sempre copiosamente repetidas. No total são 350 palavras, dicionarizadas nos extras do DVD. Para completar as lacunas da arcaica comunicação oral, os primitivos exploram os gestos e expressões corporais, coreografados pelo etologista inglês Desmond Morris, que desenvolveu insultos, provocações etc., como quando Noah vira as costas para Ika e cisca os pés, simbolizando desprezo.

As tribos com as quais se deparam os guerreiros ulans são reveladas em escala ascendente de inteligência, até que se defrontam com a sociedade Ivaka, da qual Ika é membro. Os ivakas estão no topo da hierarquia intelectual, eles constroem casas, vivem cercados por armadilhas naturais, têm experiências medicinais, usam o atlatle (arma da era pré-escrita que impulsiona o arremesso de projéteis) e detêm outras tecnologias. Eles se diferenciam mais ainda nas questões sócio-culturais. No encontro com Naoh, o ancião analisa o pênis e o vigor do guerreiro, prepara um banquete e serve-lhe as mulheres mais saudáveis para reprodução... uma eugenia das cavernas, o que revela uma capacidade cognitiva bastante avançada. Além do mais eles se embriagam, festejam... como nos tempos modernos.

Dentre os novos conhecimentos, o mais importante para os ulans, sem dúvida, é técnica de desenvolver o fogo, mas destaco aqui a noção do humor. Quando, no começo da saga, Amoukar (Ron Perlman) é acidentalmente atingido por uma pedra, a gargalhada de Ika é algo incompreensível; mais tarde, depois de um breve convívio com os ivakas, Amoukar deliberadamente atinge Gaw (Nicholas Kadi) e todos experimentam, pela primeira vez, o prazer de uma boa risada. Da mesma forma descobrem como aprimorar o prazer do sexo, que vai do oportunismo ao ato passional.

A Guerra do Fogo já foi bem mais popular no Brasil, quando era freqüentemente exibido na Sessão da Tarde, da Rede Globo, hoje a transmissão no horário é impossível devido à classificação indicativa que ficou mais rígida nos últimos anos. Infelizmente é um filme não tão visto quanto merece e que pode render debates em diversas áreas: sexologia, antropologia, lingüística etc. E não devemos nos esquecer que, como um bom filme, ainda é bastante divertido.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A General

The General
EUA, 1927
Direção: Buster Keaton e Clyde Bruckman

"Buster Keaton é engraçado até sem fazer nada."
Citação de Os Sonhadores

A fase muda do cinema está improdutiva, mas não sepultada, temos o conforto de saber que certas películas se eternizaram. Dois atores, bastante prolíferos e com filmes ainda atuais, costumam ser citados como os mais importantes da época: Buster Keaton e Charles Chaplin. Eles escreviam, atuavam e dirigiam comédias, principalmente; tais semelhanças os levaram à concorrência e eternas discussões acerca de qual o melhor. O maravilhoso filme metalingüístico Os Sonhadores (The Dreamers, 2003), de Bernardo Bertolucci, estabelece o debate em um diálogo entre jovens cinéfilos sobre os astros, o interessante é que eles não chegam a um consenso ou uma conclusão. Roger Ebert, premiado crítico de cinema americano, chegou a citá-los como arqui-rivais... termo exagerado e desnecessário. Não vejo nenhum como superior, ambos são talentos inegáveis e ímpares que reinaram o cinema mudo. Contracenaram uma única vez, em Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), protagonizado e dirigido por Chaplin, ironicamente, um filme sonoro, tecnologia que os arruinou. “Silêncio é dos deuses; só macacos tagarelam”, disse Keaton, que trabalhou essencialmente com imagens e não se adaptou perfeitamente aos filmes sonoros, firmados na década de 1930. Por vários anos ficou quase que totalmente esquecido, Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., 1950) faz uma ótima anedota sobre o assunto, Buster Keaton e Anna Nilsson, veteranos do cinema mudo, jogam cartas ao lado de Norma Desmond, personagem fictícia interpretada por Gloria Swanson, algo como os integrantes do “clube dos artistas falidos”.

Buster Keaton no "Clube dos Artistas Falidos", cena de Crepúsculo dos Deuses

Fato comum nos filmes de Buster Keaton é a busca venturosa pela sua paixão, em A General, há duas paixões, a locomotiva, que intitula o filme, e a adorável Annabelle Lee (Marion Mack). Johnny Gray (Keaton) nos cativa desde o princípio, na cena em que se dirige à casa de Annabelle, no seu encalço estão dois garotinhos – na época da Guerra Civil Americana (1861–1865), cenário do filme, maquinista era uma profissão muito bem-vista e almejada por crianças, elas são admiradoras dele –, lá o jovem descobre que não tem chance como pretendente, senão trajando um uniforme militar. É impedido de alistar-se, não por ter 1.68 metro de altura e um porte físico atrofiado, mas porque é mais útil ao lado dos trens. Um das cenas mais significantes de A General vem a seguir, Gray, sentado na ferragem da locomotiva, pensando na mulher que lhe é agora impossível, sequer percebe o movimento das barras, absorto em sua frustração; algo semelhante estava planejado para a cena final, quando Gray e Annabelle estão sentados na mesma barra metálica, a idéia foi descartada, haja vista o risco que correriam (a preocupação, porém, era voltada exclusivamente a Marion Mack).

A aventura se inicia com o roubo da General junto ao seqüestro de Annabelle, e Johnny Gray usa a locomotora Texas para o resgate. Imagino que a maioria das pessoas – que não tenha visto A General – pensa em uma perseguição entre trens como algo enfadonho e repetitivo, até porque entre esses meios de transporte, andando sobre o mesmo trilho, jamais haverá ultrapassagem, mas Keaton estava no auge de sua criatividade. São incríveis as acrobacias e manobras que ele realiza, sem uso de dublês, para resgatar suas paixões, a cena em que ele usa um canhão e, involuntariamente, aproveita uma curva para disparar na direção de seus algozes é impagável, de uma perfeita precisão; outra em que, carregando o trem de lenha, coloca duas toras em um vagão e no terceiro arremesso derruba toda a carga que pusera, tudo feito num plano contínuo; na mais impressionante, porém, Gray tem de remover dois dormentes que bloqueiam os trilhos, sai do trem, tira o primeiro manualmente e o lança contra o segundo, livrando o caminho – um bloco de madeira, que deve pesar algumas dezenas de quilos, passa a cerca de metro da sua cabeça, isso quando não se podia contar com a ajuda de efeitos digitais. Fantástico. Depois desse segmento da saga, o paladino se infiltra no acampamento nortista, fica a par do plano adversário e se apossa de seus intentos. Com um enredo tão simples, este filme consegue uma montagem incrível, na segunda fase da perseguição a situação se inverte, e nosso herói usa as artimanhas que o estorvaram, agora, contra os soldados do norte, culminando na destruição do comboio inimigo.

As façanhas de Gray são mais surpreendentes do que burlescas, muitas gags vêm dos acidentes que lhe trazem vantagens, como o tiro de canhão que derruba a represa e arrasta os soldados do Norte, já no fim do filme. A personagem de Marion Mack também tem o seu lado cômico, ela é um empecilho para o herói – muito comum nas aventuras que entram em cartaz hoje em dia –, quando a lenha está escassa e precisam de combustível, ela seleciona a madeira que lhe agrada o olhar, descarta uma tora simplesmente por ter um furo, mero capricho feminino; também é incapaz de pôr em prática as instruções mais básicas de seu protetor para operar a General. Annabelle Lee é uma convincente vítima de seqüestro, ela sofre humilhações e pungências, é ainda mais doloroso quando nos lembramos das primeiras cenas, quando ela é apresentada como uma imaculada jovem do Sul. “A moça divertiu-se mais nesse filme do que em qualquer outro que havia feito. Penso que é porque muitas atrizes principais, naquela época, pareciam que tinham acabado de sair de um salão de beleza. Mantinham-nas sempre com esse aspecto – mesmo em carruagens, elas estavam sempre lindas. Ignoramos isso, sujamos a nossa heroína um pouco e demos-lhe um tratamento duro”, palavras do diretor.

A epopéia da comédia reserva um fim revigorante para Johnny Gray, mas não para Buster Keaton, pois foi um fracasso econômico nas bilheterias, junte a isso o alto custo de produção, toda a guerra, figurino e a destruição de uma ponte e uma locomotiva reais, a cena mais cara do cinema mudo. Seu talento se tornaria cada vez mais pálido, anos depois seria um modesto apresentador de um programa de TV com meia hora de duração. Nas últimas décadas, entretanto, a filmografia de Keaton foi ressuscitada, suas obras, especialmente A General, costumam entrar em listas de melhores filmes de todos os tempos. Justiça ainda que tardia.